A liberdade que a cultura negra mobiliza, ou melhor, inventa, é distinta daquela que o liberalismo econômico ou mesmo o ideário humanista da revolução francesa solicitam. A liberdade negra não tem o caráter exploratório que os colonizadores testemunham na sua sanha expansionista que inclusive, escapa da territorialidade do planeta e se expande através da imaginação aos horizontes dos cosmos, ou o contorno da liberdade laboral que presume direitos de circulação e de consumo. A liberdade ansiada pela negridade se radica na liberdade em deixar de ser diferenciada/o pela racialidade. É uma liberdade ontológica que desacorrenta da animalização e da subjugação e nos torna passíveis e possíveis de sermos amados como seres humanos, amados inclusive e principalmente por nós mesmas/os dentro dessa subjetividade mutilada que a escravização e a racialização marcou fenotipicamente. Essa liberdade então é buscada e articulada primeiro através da desidentificação sentimental com os aparatos simbólicos hegemônicos, ou seja, o campo estético com sua ética imanente. É preciso quebrar o espelho narcísico da branquitude que filosoficamente desenha as pessoas negras como um Outro cultural e se constituir através da negatividade, do zero absoluto, do excesso e da violência que formam e conformam nosso repertório comum, cotidianamente reiterado, como uma temporalidade perene que rompe a progressão evolucionista desenhada na linha que vem do passado para o futuro.
A própria presença da negridade é a manifestação da ruptura do continuum espaço-tempo, pois cada pessoa negra que escapa ao menos em parte dos processos de marginalização e subjugação rompe com a norma social estabelecida, enquanto as que não escapam acabam vivenciando esse tempo estanque onde a escravização e todos os processos a ele conjugados ecoam. Vivemos, nós pessoas negras em um vórtice temporal, indo e voltando ao passado, como a protagonista de Octavia Butler em Kindred, onde cada situação vivenciada, cada encontro ou desencontro com os ecos da exploração humana, podem servir de pontes temporais desestabilizando o agora com a presença imanente de um passado que é contemporâneo. Como afirma a pesquisadora da branquitude Lia Vainer, quando falamos sobre racismo institucional isso significa dizer que, se tudo se manter dentro da normalidade, o resultado será racista.[1] A negridade manifesta uma resistência à objetificação que é desempenhada através de performatividades que avançam simultaneamente sobre si mesmas e sobre o meio, sobre si e sobre a recepção de si, como um sacrifício ritual que é inerente às vanguardas, mas não buscando um ressignificação formalista apenas, mas uma ressignificação simultânea de sí mesma/o, da/o própria/o agente e também da agência da expressão. Isso se realiza na transgressão que é desencadeada neste nado à contracorrente, nessa resistência que é gritada performativamente e que abre caminho para outras expressões semeando concórdias e discórdias no campo minado que é a terreno simbólico e imaterial que sustenta toda a materialidade.
[1] Lia Vainer. Encardido, branquíssimo. P.42
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