REAJA – Um olhar sobre os react videos performances de @paola_ribeiros no Instagram

Romulo Alexis

É consabido que há toda uma redoma cultural restringindo os movimentos da voz na sociedade. A multiplicidade de atos sonoros vocais é negligenciada pela(s) cultura(s) e a voz acaba submetida em função de suas qualidades comunicacionais. Um exemplo: ao presenciarmos em nossa experiência cotidiana alguém cantando sozinho, em qualquer situação que seja, abre-se um estado de presença performático onde podemos interpretar a pessoa que canta em diversos significados que vão do artista ao embriagado, do apaixonado ao louco, do xamã ao ogã, entre muitas outras leituras. Quanto mais crua a relação do corpo com a voz mais desnuda a pessoa se torna, em relação às roupas sociais. Assim, ao pensarmos no ato da improvisação livre vocal rompendo a redoma cultural que encerra a voz e o entendimento do que é canto/música, a entendemos como o lugar mais desafiador e virtualmente livre da expressão humana.

Nesse processo de isolamento/confinamento de 2020 a artista multipotencial Paola Ribeiros tem articulado seu território sonoro em vídeos-performances nas quais interage através da voz, com outrxs artistas da música experimental / livre. Ao propor-se a reagir criativamente a esses materiais, Paola vêm acessando a natureza exploratória de sua expressão vocal em gêneros musicais complexos.

Nascem nestes gestos possibilidades de transgredir os guetos internos de criatividade e os externos de interação com x outrx, em um processo de fluxo sem refluxo, uma vez que a locução da performance se dá apenas em Paola que interage com registros audiovisuais da performance de colaboradorxs. Nos trabalhos e processos há uma descontinuidade que surge entre as possibilidades e limitações das propostas que Paola recebe e as articulações, desenvolvimentos e esgotamentos de suas próprias reações à estes materiais.

Ao reagir Paola surge em uma bolha poética de oralidade implosiva utilizando hálitos líquidos, múltiplas labialidades que roçam o fonematismo dental, palatal, gutural, fazendo deste sintetizador orgânico um uso teflon, sem aderência a estilos e formatações do cancionismo popular, mas com diálogos fortuitos com as tradições da voz ritual e com as práticas de vanguardas estéticas ligadas ao oral.

Na voz que improvisa muitas vezes a linguagem estética é um rito de desaceleração. Uma palavra que vai se ralentando até tornar-se canto e um canto que se fragmenta até tornar-se apenas som. Essa voz concreta feita de massa de modelar sonora possui uma característica, entre muitas, de apresentar nos sons qualidades emotivas não catalogadas socialmente. Neste campo polimórfico não há passionalização, figurativização ou tematização já formalizadas que encerrem os sentidos destas abordagens.

O registro (fonográfico e audiovisual), portador do desejo intemporal segundo P. Zumthorn, matou a efemeridade da performance, no entanto, os sentidos causados pela repetição ainda seguem incapturáveis. Como um rio que é o mesmo sempre mutável, assim somos e assim se dá nossa relação com os artefatos culturais. Neste presente líquido que se esvai, tal qual o rio nós nunca somos xs mesmxs ao acessar o mesmo registro.

A frugalidade das reações de Paola demonstram o equilíbrio que a artista vem desenvolvendo entre seus recursos vocais e sua expressão, construindo aí um repertório, se integrando a esta genealogia da voz criativa que não se imobiliza e auto representa-se jogando com os efeitos da oralidade sobre o próprio sentido da Voz.

Como conferir sentido a esta Voz?

É mais fácil observar essa Voz movência de Paola desde a organização gestual das energias que se apresentam nestas vídeo-performances. Em sua fisicalidade manifesta-se uma amplitude de tessituras e musculaturas vocais treinadas em saltos de intensidade e sutileza. Seu gestual técnico manifesta uma polifonia de emissões e articulações em diferentes concretudes sonoras que se desenham na variedade dos timbres. No seu gesto interpretativo há uma manipulação e variação de vozes, uma alinearidade da flora vocal, como se Paola executasse uma colagem consigo mesma.

Paola Reacts –

[1 – Romulo Alexis – Trompete] – Há uma cautela, uma chegança consciente e um desenvolvimento que se processa lentamente como um entendimento desta experiência e deste deixar-se afetar pelo estímulo. Há no material do trompete uma clausura textural que não dialoga potencialmente com as impermanências utilizadas por Paola no experimento. Há também uma necessidade de apuro técnico no som do material, que é conquistado nas experiências seguintes.

[2 – Luiz Viola – Piano] – Aqui surgem alguns territórios culturais que Paola tem na paisagem de sua voz que dialogam com a sonoridade polirrítmica e polidinâmica de Viola. Nesta performance de Paola destaco as “palhetadas” vocais com as quais ela ataca o piano. Uma contrapartida: o experimento se mostra um pouco longo, perdendo a possibilidade de uma conclusão mais aguda.

[3 – Wagner – Bateria] – Recebendo novamente o estímulo rítmico e se conectando a um panteão de referências afro potencializadas na relação voz-tambor, Paola se esquiva dos estereótipos e desenvolve uma reação onde articula melodias fatiadas com notas longas, destacando aqui sua abordagem com harmônicos trêmolos.

[4 – Inês Terra – Voz] – Aqui as vozes ocupando o mesmo espaço sonoro, uma servido de estrutura para o desenvolvimento da outra, instaura aquele estado de presença performático que estatiza o tempo. Paola não percorre as veredas circulares a exemplo de Inês, manifestando aqui uma qualidade não imitativa que eu aprecio muito em improvisação. Há uma atmosfera de oração com um uso prazeroso de glissandos grunhidos por ambas.

[5 – Thainá Oliveira] – Nesta vídeo-performance há uma maior sincronicidade em jogo e uma exploração da atmosfera ritual onde os silêncios mostram toda sua potencialidade criativa de devir. Espetacular fluxo de acaso e indeterminação que me enche de contentamento de ter conectado estes dois universos em 2019 na gravação do álbum Cachaça! de Radio Diaspora.

https://radio-diaspora.bandcamp.com/album/cacha-a

[6 – B-Alúria] A Voz é sempre uma voz. Um signo efêmero de suspense. Paola manifesta aqui vozes que ecoam de estertores, do maelstrom úmido e mítico, na relação com a sonoridade densa e apocalíptica proposta por B-Alúria. A voz hálito abre o espaço sonoro para o grito. E o grito é e será sempre um grito, grávido de terrores onde quer que ecoe.

[7 – Trapézio] Em trio o diálogo dá margem à uma atmosfera por onde se desenvolvem harmonias que se apoiam em procedimentos cristalizados na música de concerto contemporânea. Embora se incorporando bem aos estímulos há menos espaço para a voz que concorre com mais elementos no espaço sonoro.

[8 – Eddu Ferreira ] No último react analisado até a conclusão deste texto, o material proposto por Eddu Ferreira (de manipulação eletrônica de sua voz) traz um terreno fértil de interação com a voz concreta de Paola. É rico o contraste entre as oralidades expandidas amplificadas de Eddu e o lirismo in natura de Paola na peça, que deixa o desejo de saber mais sobre as possibilidades de assuntos nesta conversa.

Sem a intenção de concluir e afirmando o desejo de compartilhar destas escutas, deixo a imagem (sonora) de que a intuição é uma escuta. O que se põe em jogo na criação em tempo real é uma abertura radicalmente intuitiva. Ouvir intuitivamente passa por silenciar-se e dar passagem à vazão do indefinido em oposição ao que se supõe saber, às respostas prontas, aos velhos truques muito bem treinados no interior dos sistemas culturais que nos habitam e que se esforçam em definir e organizar tudo em cognições.

Esta abertura intuitiva então se opera nos dois eixos do fluxo da informação: na realizadora que se reinventa a cada estímulo e naquelxs que se dispõem a acessar e fruir destas video-performances, que chegam como um convite para ouvir um fenômeno, como quem ouve o mar dialogando com o vento ou os pássaros que celebram seu vôo rodopiando no céu noturno.

*foto de @rodrigosommerphoto

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