Toda experiência musical está completamente envolvida por afetos. A música é algo que, no campo das sensações, mobiliza nossos afetos tanto individual quanto coletivamente. Nossos próprios gostos musicais são relações que se desenvolvem na esfera afetiva. Um exemplo: basta que alguém de quem gostamos nos apresente um artista, um estilo, um gênero musical para que iniciemos uma relação afetiva com aquele material. Se analizarmos nossas lembranças perceberemos que a maioria das nossas preferências se legitimam desta forma.

O gosto pressupõe um afeto que se relaciona a algo ou a alguém. Fico sempre intrigado quando não gosto de algum estilo musical: O que acontece? Será que este estilo não alcança a esfera dos meus afetos ou será eu que não chego até esta manifestação impedido pelo apego aos hábitos que me habitam? Estilos são diferenças formais que se estabelecem entre si ao longo de seus desenvolvimentos. Isto se dá na cultura de modo amplo e dinâmico, e se materializa nos hábitos e nas identidades. Nossos hábitos, nada mais são do que o trabalho exercido pelo tempo sobre nós, à disposição de nosso devir.

É este mesmo devir que me aproxima da música experimental, que talvez seja o gênero pelo qual a maioria das pessoas tenha menos afeição. O que chamo aqui de música experimental é aquela que escapando de sub-categorizações, não prevê seu próprio “resultado final” e que desenvolveu-se, tanto na esfera popular quanto acadêmica, longe dos interesses do mercado. Assim, fluiu em nichos de completa liberdade, afastada do grande público mas germinando comunidades coesas de criadores e interessados pela relação com a criação em tempo real ou quase.

Por não se apoiar em critérios legitimados pelas tradições musicais a música experimental (experimentais) pode parecer difícil, hostil, mais voltada ao ego de quem toca do que ao repertório de quem escuta, mais baseada na diferença do que na repetição, sem letra e muitas vezes sem melodia ou harmonia definida; e o tempo? Que compasso é este? Mas isto é música?

Muitas vezes realmente não há compasso nem esquadro nestas experiências. O virtuosismo, que é um critério de legitimação na música tradicional, às vezes também perde sentido. O pensamento racional necessita de explicações e busca padrões e estilos, no entanto o músico experimental é capaz de tomar emprestado materiais de uma variedade de estilos sem pertencer a nenhum deles, baseando-se no repertório de seus afetos sonoros. Os ouvintes de música experimental encontram na diferença e na imprevisibilidade o seu interesse e desenvolvem aí seus afetos através de uma viagem ao centro do som. A intensidade que esta escuta exige mobiliza sensações, percepções, memórias, instintos, inteligências estas que tanto a música quanto os afetos nos exigem. É neste terreno sensível que música e afetos se encontram dando sentido a nossa abertura à vida nos campos estético e ético. A escuta como exercício cultural nos aproxima do conhecimento de outras identidades locais e globais.

A música experimental, quando criada em tempo real, concentra, para músico e ouvinte, o pleno sentido do termo ‘contemporâneo’: uma experiência que se desenvolve no tempo presente, lidando com a imprevisibilidade, ressignificando o sentido de ‘erro’ e gerando potências expressivas que se relacionam diretamente com nossa sensibilidade intuitiva.

No Brasil a música experimental possui uma tradição polifônica e encontra-se efervescente em várias cenas artísticas com um número cada vez maior de protagonistas e de público. Deixar-se atravessar por estas manifestações traz a oportunidade de experimentar um conteúdo cultural híbrido, dinâmico e não definitivo que se comunica de modo inovador com nossos hábitos e afetos adquiridos. Através destas experiências podemos desenvolver modos diferentes de escuta o que consequentemente enriquece nosso repertório cultural e humano, nossas inteligências intelectual e emocional. Fica a pergunta então: Por que será que este estilo não alcança a esfera de seus afetos?

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